sábado, 4 de abril de 2009

O PRIMO BASÍLIO (EÇA DE QUEIRÓS)

O Primo Basílio
de Eça de Queirós
CAPÍTULO I
Tinham dado onze horas no cuco da sala de jantar. Jorge fechou o volume
de Luís Figuier que estivera folheando devagar, estirado na velha voltair de
marroquim escuro, espreguiçou-se, bocejou e disse:
— Tu não te vais vestir, Luísa?
— Logo.
Ficara sentada à mesa a ler o Diário de Notícias, no seu roupão de manhã
de fazenda preta, bordado a sutache, com largos botões de madrepérola; o cabelo
louro um pouco desmanchado, com um tom seco do calor do travesseiro, enrolavase,
torcido no alto da cabeça pequenina, de perfil bonito; a sua pele tinha a brancura
tenra e láctea das louras; com o cotovelo encostado à mesa acariciava a orelha, e,
no movimento lento e suave dos seus dedos, dois anéis de rubis miudinhos davam
cintilações escarlates.
Tinham acabado de almoçar.
A sala esteirada, alegrava, com o seu teto de madeira pintado a branco, o
seu papel claro de ramagens verdes. Era em julho, um domingo, fazia um grande
calor; as duas janelas estavam cerradas, mas sentia-se fora o sol faiscar nas
vidraças, escaldar a pedra da varanda; havia o silêncio recolhido e sonolento de
manhã de missa; uma vaga quebreira amolentava, trazia desejos de sestas ou de
sombras fofas debaixo de arvoredos, no campo, ao pé da água; nas duas gaiolas,
entre as bambinelas de cretone azulado, os canárias dormiam; um zumbido
monótono de moscas arrastava-se por cima da mesa, pousava no fundo das
chávenas sobre o açúcar mal derretido, enchia toda a sala de um rumor dormente.
Jorge enrolou um cigarro, e muito repousado, muito fresco na sua camisa de
chita, sem colete, o jaquetão de flanela azul aberto, os olhos no teto, pôs-se a
pensar na sua jornada ao Alentejo. Era engenheiro de minas, no dia seguinte devia
partir para Beja, para Évora, mais para o sul até São Domingos; e aquela jornada,
em julho contrariava-o como uma interrupção, afligia-o como uma injustiça. Que
maçada por um verão daqueles! Ir dias e dias sacudido pelo chouto de um cavalo de
aluguel, por esses descampados do Alentejo que não acabam nunca, cobertos de
um rastolho escuro, abafados num sol baço, onde os moscardos zumbem! Dormir
nos montados, em quartos que cheiram a tijolo cozido, ouvindo em redor, na
escuridão da noite tórrida, grunhir as varas dos porcos! A todo o momento sentir
entrar pelas janelas, passar no ar o bafo quente das queimadas! E só!
Tinha estado até então no ministério, em comissão. Era a primeira vez que
se separava de Luísa; e perdia-se já em saudades daquela salinha, que ele mesmo
ajudara a forrar de papel novo nas vésperas do seu casamento, e onde, depois das
felicidades da noite, os seus almoços se prolongavam em tão suaves preguiças!
E cofiando a barba curta e fina, muito frisada, os seus olhos iam-se
demorando, com uma ternura, naqueles móveis íntimos, que eram do tempo da
mamã: o velho guarda-louça envidraçado, com as pratas muito tratadas a gesso-cré,
resplandecendo decorativamente; o velho painel a óleo, tão querido, que vira desde
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pequeno, onde apenas se percebiam, num fundo lascado, os tons avermelhados de
cobre de um bojo de caçarola e os rosados desbotados de um molho de rabanetes!
Defronte, na outra parede, era o retrato de seu pai: estava vestido à moda de 1830,
tinha a fisionomia redonda, o olho luzidio, o beiço sensual; e sobre a sua casaca
abotoada reluzia a comenda de Nossa Senhora da Conceição. Fora um antigo
empregado do Ministério da Fazenda, muito divertido, grande tocador de flauta.
Nunca o conhecera, mas a mamã afirmava-lhe que o retrato só lhe faltava falar.
Vivera sempre naquela casa com sua mãe. Chamava-se Isaura: era uma senhora
alta, de nariz afilado, muito apreensiva; bebia ao jantar água quente; e ao voltar um
dia do lausperene da Graça, morrera de repente, sem um ai!
Fisicamente Jorge nunca se parecera com ela. Fora sempre robusto, de
hábitos viris. Tinha os dentes admiráveis de seu pai, os seus ombros fortes.
De sua mãe herdara a placidez, o gênio manso. Quando era estudante na
Politécnica, às oito horas recolhia-se, acendia o seu candeeiro de latão, abria os
seus compêndios. Não freqüentava botequins, nem fazia noitadas. Só duas vezes
por semana, regularmente, ia ver uma rapariguita costureira, a Eufrásia, que vivia ao
Borratem, e nos dias em que o Brasileiro, o seu homem, ia jogar o bóston ao clube,
recebia Jorge com grandes cautelas e palavras muito exaltadas; era enjeitada, e no
seu corpinho fino e magro havia sempre o cheiro relentado de uma pontinha de
febre. Jorge achava-a romanesca, e censurava-lho. Ele nunca fora sentimental; os
seus condiscípulos, que liam Alfred de Musset suspirando e desejavam ter amado
Margarida Gautier, chamavam-lhe proseirão6, burguês; Jorge ria; não lhe faltava um
botão nas camisas; era muito escarolado; admirava Luís Figuier, Bastiat e Castilho,
tinha horror a dívidas, e sentia-se feliz.
Quando sua mãe morreu, porém, começou a achar-se só: era no inverno, e
o seu quarto nas traseiras da casa, ao sul, um pouco desamparado, recebia as
rajadas do vento na sua prolongação uivada e triste; sobretudo à noite, quando
estava debruçado sobre o compêndio, os pés no capacho, vinham-lhe melancolias
lânguidas; estirava os braços, com o peito cheio de um desejo; quereria enlaçar uma
cinta fina e doce, ouvir na casa o frufru de um vestido! Decidiu casar. Conheceu
Luísa, no verão, à noite, no Passeio. Apaixonou-se pelos seus cabelos louros, pela
sua maneira de andar, pelos seus olhos castanhos muito grandes. No inverno
seguinte foi despachado, e casou. Sebastião, o seu íntimo, o bom Sebastião, o
Sebastiarrão, tinha dito, com uma oscilação grave da cabeça, esfregando
vagarosamente as mãos:
— Casou no ar! Casou um bocado no ar!
Mas Luísa, a Luisinha, saiu muito boa dona de casa; tinha cuidados muito
simpáticos nos seus arranjos; era asseada, alegre como um passarinho, como um
passarinha amiga do ninho e das carícias do macho; e aquele serzinho louro e
meigo veio dar à sua casa um encanto sério.
— É um anjinho cheio de dignidade! — dizia então Sebastião, o bom
Sebastião, com a sua voz profunda de basso.
Estavam casados havia três anos. Que bom que tinha sido! Ele próprio
melhorara; achava-se mais inteligente, mais alegre... E recordando aquela existência
fácil e doce, soprava o fumo do charuto, a perna traçada, a alma dilatada, sentindose
tão bem na vida como no seu jaquetão de flanela!
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— Ah! — fez Luísa de repente, toda admirada para o jornal, sorrindo.
— Que é?
— É o primo Basílio que chega! — E leu alto, logo:
— "Deve chegar por estes dias a Lisboa, vindo de Bordéus, o Sr. Basílio de
Brito, bem conhecido da nossa sociedade. Sua Excelência que, como é sabido, tinha
partido para o Brasil, onde se diz reconstituíra a sua fortuna com um honrado
trabalho, anda viajando pela Europa desde o começo do ano passado. A sua volta à
capital é um verdadeiro júbilo para os amigos de Sua Excelência que são
numerosos."
— E são! — disse Luísa, muito convencida.
— Estimo, coitado! — fez Jorge, fumando, anediando a barba com a palma
da mão. — E vem com fortuna, heim?
— Parece.
Olhou os anúncios, bebeu um gole de chá, levantou-se, foi abrir uma das
portadas da janela.
— Oh! Jorge, que calor que lá vai fora, Santo Deus! — Batia as pálpebras
sob a radiação da luz crua e branca.
A sala, nas traseiras da casa, dava para um terreno vago, cercado de um
tabuado baixo, cheio de ervas altas e de uma vegetação de acaso; aqui, ali, naquela
verdura crestada do verão, largas pedras faiscavam, batidas do sol perpendicular; e
uma velha figueira brava, isolada no meio do terreno, estendia a sua grossa
folhagem imóvel, que, na brancura da luz, tinha os tons escuros do bronze. Para
além eram as traseiras de outras casas, com varandas, roupas secando em canas,
muros brancos de quintais, árvores esguias. Uma vaga poeira embaciava, tornava
espesso o ar luminoso.
Caem os pássaros! — disse ela cerrando a janela. — Olha tu pelo Alentejo,
agora!
Veio encostar-se à voltaire de Jorge, passou-lhe lentamente a mão sobre o
cabelo preto e anelado. Jorge olhou-a, triste já da separação; os dois primeiros
botões do seu roupão estavam desapertados; via-se o começo do peito de uma
brancura muito tenra, a rendinha da camisa; muito castamente Jorge abotoou-lhos.
— E os meus coletes brancos? — disse.
— Devem estar prontos.
Para se certificar chamou Juliana.
Houve um ruído domingueiro de saias engomadas. Juliana entrou,
arranjando nervosamente o colar e o broche. Devia ter quarenta anos e era
muitíssimo magra. As feições, miúdas, espremidas, tinham a amarelidão de tons
baços das doenças de coração. Os olhos grandes, encovados, rolavam numa
inquietação, numa curiosidade, raiados de sangue, entre pálpebras sempre
debruadas de vermelho. Usava uma cuia de retrós imitando tranças, que lhe fazia a
cabeça enorme. Tinha um tique nas asas do nariz. E o vestido chato sobre o peito,
curto da roda, tufado pela goma das saias — mostrava um pé pequeno, bonito,
muito apertado em botinas de duraque com ponteiras de verniz.
Os coletes não estavam prontos, disse com uma voz muito lisboeta; não
tivera tempo de os meter em goma.
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— Tanto lhe recomendei, Juliana! — disse Luísa. — Bem, vá. Veja como se
arranja! Os coletes hão de ficar à noite na mala!
E apenas ela saiu:
— Estou a tomar ódio a esta criatura, Jorge!
Há dois meses que a tinha em casa e não se pudera acostumar à sua
fealdade, aos seus trejeitos, à maneira aflautada de dizer chapiéu, tisoiras, de
arrastar um pouco os rr, ao ruído dos seus tacões que tinham laminazinhas de
metal; ao domingo, a cuia, o pretensioso do pé, as luvas de pelica preta arrepiavamlhe
os nervos.
— Que antipática!
Jorge ria:
— Coitada, é uma pobre de Cristo! — E depois que engomadeira admirável!
No ministério examinavam com espanto os seus peitilhos! — O Julião diz bem: eu
não ando engomado, ando esmaltado! Não é simpática, não, mas é asseada, é
apropositada...
E levantando-se, com as mãos nos bolsos das suas largas calças de flanela:
— E, enfim, minha filha, a maneira como ela se portou na doença da tia
Virgínia... Foi um anjo para ela! — Repetiu com solenidade: — De dia, de noite, foi
um anjo para ela! Estamos4he em dívida, minha filha! — E começou a enrolar um
cigarro, com a fisionomia muito séria.
Luísa, calada, fazia saltar com a pontinha da chinela a orla do roupão; e
examinando fixamente as unhas, a testa um pouco franzida, pôs-se a dizer:
Mas enfim, se eu embirro com ela, não me importa, posso bem mandá-la
embora.
Jorge parou, e raspando um fósforo na sola do sapato:
— Se eu consentir, minha rica... É que é uma questão de gratidão, para
mim!
Ficaram calados. O cuco cantou meio-dia.
— Bem, vou à vida — disse Jorge. Chegou-se ao pé dela, tomou-lhe a
cabeça entre as mãos.
— Viborazinha! — murmurou, fitando-a muito meigamente.
Ela riu. Ergueu para ele os seus magníficos olhos castanhos, luminosos e
meigos. Jorge enterneceu-se, pôs-lhe sobre as pálpebras dois beijos chilreados. E
torcendo-lhe o beicinho, com uma meiguice:
— Queres alguma coisa de fora, amor?
— Que não viesse muito tarde.
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Ia deixar uns bilhetes, ia numa tipóia, era um pulo...
E saiu, feliz, cantando com a sua boa voz de barítono:
— Dia dei oro,
Dei mondo signor
La la ra, la ra
Luísa espreguiçou-se. Que seca ter de se ir vestir! Desejaria estar numa
banheira de mármore cor-de-rosa, em água tépida, perfumada, e adormecer! O
numa rede de seda, com as janelas cerradas, embalar-se, ouvindo música! Sacudiu
a chinelinha; esteve a olhar muito amorosamente o seu pé pequeno, branco como
leite, com veias azuis, pensando numa infinidade de coisinhas: — em meias de seda
que queria comprar, no farnel que faria a Jorge para a jornada, em três guardanapos
que a lavadeira perdera...
Tornou a espreguiçar-se. E saltando na ponta do pé descalço, foi buscar ao
aparador por detrás de uma compota um livro um pouco enxovalhado, veio
estender-se na voltaire, quase deitada, e, com o gesto acariciador e amoroso dos
dedos sobre a orelha, começou a ler, toda interessada.
Era a Dama das camélias. Lia muitos romances; tinha uma assinatura, na
Baixa, ao mês. Em solteira, aos dezoito anos entusiasmara-se por Walter Scott e
pela Escócia; desejara então viver num daqueles castelos escoceses, que têm sobre
as ogivas os brasões do clã, mobilados com arcas góticas e troféus de armas,
forrados de largas tapeçarias, onde estão bordadas legendas heróicas, que o vento
do lago agita e faz viver; e amara Ervandalo, Morton e lvanhoé, ternos e graves,
tendo sobre o gorro a pena de águia, presa ao lado pelo cardo de Escócia de
esmeraldas e diamantes. Mas agora era o moderno que a cativava: Paris, as suas
mobílias, as suas sentimentalidades. Ria-se dos trovadores, exaltara-se por Mr. de
Camors; e os homens ideais apareciam-lhe de gravata branca, nas ombreiras das
salas de baile, com um magnetismo no olhar, devorados de paixão, tendo palavras
sublimes. Havia uma semana que se interessava por Margarida Gautier; o seu amor
infeliz dava-lhe uma melancolia enevoada; via-a alta e magra, com o seu longo xale
de caxemira, os olhos negros cheios de avidez da paixão e dos ardores da tísica;
nos nomes mesmo do livro — Júlia Duprat, Armando, Prudência, achava o sabor
poético de uma vida intensamente amorosa; e todo aquele destino se agitava, como
numa música triste, com ceias, noites delirantes, aflições de dinheiro, e dias de
melancolia no fundo de um cupê quando nas avenidas do Bois, sob um céu pardo e
elegante, silenciosamente caem as primeiras neves.
— Até logo, Zizi — gritou Jorge do corredor, ao sair.
— Olha!
Ele veio com a bengala debaixo do braço, apertando as luvas.
Não apareças muito tarde, heim? Escuta, traze-me uns bolos do Baltresqui
para a D. Felicidade. Ouve. Vê se passas pela M.me François que me mande o
chapéu. Escuta.
— Que mais, bom Deus?
— Ah! Não! Era para ires pelo livreiro que me mande mais romances... Mas
está fechado!
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Foi com duas lágrimas a tremer-lhe nas pálpebras que acabou as páginas
da Dama das camélias. E estendida na voltaire, com o livro caído no regaço,
fazendo recuar a película das unhas, pôs-se a cantar baixinho, com ternura, a ária
final da Traviata:
— Addio, dei passato...
Lembrou-lhe de repente a notícia do jornal, a chegada do primo Basílio...
Um sorriso vagaroso dilatou-lhe os beicinhos vermelhos e cheios. — Fora o
seu primeiro namoro, o primo Basílio! Tinha ela então dezoito anos! Ninguém o
sabia, nem Jorge, nem Sebastião...
De resto fora uma criancice; ela mesma, às vezes, ria, recordando as
pieguices ternas de então, certas lágrimas exageradas! Devia estar mudado o primo
Basílio. Lembrava-se bem dele — alto, delgado, um ar fidalgo, o pequenino bigode
preto levantado, o olhar atrevido, e um jeito de meter as mãos nos bolsos das calças
fazendo tilintar o dinheiro e as chaves! Aquilo começara em Sintra, por grandes
partidas de bilhar muito alegres, na quinta do tio João de Brito, em Colares. Basílio
tinha chegado então da Inglaterra: vinha muito bife, usava gravatas escarlates
passadas num anel de ouro, fatos de flanela branca, espantava Sintra! Era na sala
de baixo pintada a oca, que tinha um ar antigo e morgado; uma grande porta
envidraçada abria para o jardim, sobre três degraus de pedra. Em roda do repuxo
havia romãzeiras, onde ele apanhava flores escarlates. A folhagem verde escura e
polida dos arbustos de camélias fazia ruazinhas sombrias; pedaços de sol
faiscavam, tremiam na água do tanque; duas rolas, numa gaiola de vime,
arrulhavam docemente; — e, no silêncio aldeão da quinta, o ruído seco das bolas de
bilhar tinha um tom aristocrático.
Depois, vieram todos os episódios clássicos dos amores lisboetas passados
em Sintra: os passeios em Sitiais ao luar, devagar, sobre a relva pálida, com
grandes descansos calados no Penedo da Saudade, vendo o vale, as areias ao
longe, cheias de uma luz saudosa, idealizadora e branca; as sestas quentes, nas
sombras da Penha Verde, ouvindo o rumor fresco e gotejante das águas que vão de
pedra em pedra; as tardes na várzea de Colares, remando num velho bote, sobre a
água escura da sombra dos freixos — e que risadas quando iam encalhar nas
ervagens altas, e o seu chapéu de palha se prendia aos ramos baixos dos choupos!
Sempre gostara muito de Sintra! Logo ao entrar os arvoredos escuros e
murmurosos do Ramalhão lhe davam uma melancolia feliz!
Tinham muita liberdade, ela e o primo Basílio. A mamã, coitadinha, toda
cismática, com reumatismo, egoísta, deixava-os, sorria, dormitava; Basílio era rico,
então; chamava-lhe tia Jojó, trazia-lhe cartuchos de doce...
Veio o inverno, e aquele amor foi-se abrigar na velha sala forrada de papel
sangue-de-boi da Rua da Madalena. Que bons serões ali! A mamã ressonava baixo
com os pés embrulhados numa manta, o volume da Biblioteca das Damas caído
sobre o regaço. E eles, muito chegados, muito felizes no sofá! O sofá! Quantas
recordações! Era estreito e baixo, estofado de casimira clara, com uma tira ao
centro, bordada por ela, amores-perfeitos amarelos e roxos sobre um fundo negro.
Um dia veio o final. João de Brito, que fazia parte da firma Bastos & Brito, faliu. A
casa de Almada, a quinta de Colares foram vendidas.
Basílio estava pobre: partiu para o Brasil. Que saudades! Passou os
primeiros dias sentada no sofá querido, soluçando baixo, com a fotografia dele entre
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as mãos. Vieram então os sobressaltos das cartas esperadas, os recados
impacientes ao escritório da Companhia, quando os paquetes tardavam...
Passou um ano. Uma manhã, depois de um grande silêncio de Basílio,
recebeu da Bahia uma longa carta, que começava: "Tenho pensado muito e entendo
que devemos considerar a nossa inclinação como uma criancice..."
Desmaiou logo. Basílio afetava muita dor em duas laudas cheias de
explicações: que estava ainda pobre; que teria de lutar muito antes de ter para dois;
o clima era horrível; não a queria sacrificar, pobre anjo; chamava-lhe "minha pomba"
e assinava o seu nome todo, com uma firma complicada.
Viveu triste durante meses. Era no inverno; e sentada à janela, por dentro
dos vidros, com o seu bordado de lã, julgava-se desiludida, pensava no convento,
seguindo com um olhar melancólico os guarda-chuvas gotejantes que passavam sob
as cordas de água; ou sentando-se ao piano, ao anoitecer, cantava Soares de
Passos:
— Ai! adeus, acabaram-se os dias. Que ditoso vivi a teu lado...ou o final da
Traviata, ou o Fado do Vimioso, muito triste, que ele lhe ensinara.
Mas então o catarro da mamã agravou-se; vieram os sustos, as noites
veladas. Na convalescença foram para Belas; ligou-se ali muito com as Cardosos,
duas irmãs magras, estouvadas e esguias, sempre coladas uma à outra, com um
passinho trotado e seco, como um casal de galgos. O que riam, Jesus! O que
falavam dos homens! Um tenente de artilharia tinha-se apaixonado por ela. Era
vesgo, mandou-lhe uns versos, "Ao lírio de Belas":
Sobre a encosta da colina
Cresce o lírio virginal...
Foi um tempo muito alegre, cheio de consolações.
Quando voltaram no inverno tinha engordado, trazia boas cores. E um dia,
tendo achado numa gaveta uma fotografia que logo ao princípio Basílio lhe mandara
da Bahia, de calça branca e chapéu panamá, fitou-a, encolhendo os ombros:
— E o que eu me ralei por esta figura! Que tola!
Tinham passado três anos quando conheceu Jorge. Ao princípio não lhe
agradou. Não gostava dos homens barbados; depois percebeu que era a primeira
barba, fina, rente, muito macia decerto; começou a admirar os seus olhos, a sua
frescura. E sem o amar sentia ao pé dele como uma fraqueza, uma dependência e
uma quebreira, uma vontade de adormecer encostada ao seu ombro, e de ficar
assim muitos anos, confortável, sem receio de nada. Que sensação quando ele lhe
disse: "Vamos casar, heim!" Viu de repente o rosto barbado, com os olhos muito
luzidios, sobre o mesmo travesseiro, ao pé do seu! Fez-se escarlate, Jorge tinha-lhe
tomado a mão; ela sentia o calor daquela palma larga penetrá-la, tomar posse dela;
disse que sim; ficou como idiota, e sentia debaixo do vestido de merino dilatarem-se
docemente os seus seios. Estava noiva, enfim! Que alegria, que descanso para a
mamã!
Casaram às oito horas, numa manhã de nevoeiro. Foi necessário acender
luz para lhe pôr a coroa e o véu de tule. Todo aquele dia lhe aparecia como
enevoado, sem contornos, à maneira de um sonho antigo — onde destacava a cara
balofa e amarelada do padre, e a figura medonha de uma velha, que estendia a mão
adunca, com uma sofreguidão colérica, empurrando, rogando pragas, quando, à
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porta da igreja, Jorge comovido distribuía patacos. Os sapatos de cetim apertavamna.
Sentia-se enjoada da madrugada, fora necessário fazer-lhe chá verde muito
forte. E tão cansada à noite naquela casa nova, depois de desfazer os seus baús!
Quando Jorge apagou a vela, com um sopro trêmulo, os luminosos faiscavam,
corriam-lhe diante dos olhos.
Mas era o seu marido, era novo, era forte, era alegre; pôs-se a adorá-lo.
Tinha uma curiosidade constante da sua pessoa e das suas coisas, mexia-lhe no
cabelo, na roupa, nas pistolas, nos papéis. Olhava muito para os maridos das
outras, comparava, tinha orgulho nele. Jorge envolvia-a em delicadezas de amante,
ajoelhava-se aos seus pés, era muito dengueiro. E sempre de bom humor, com
muita graça, mas nas coisas da sua profissão ou do seu brio tinha severidades
exageradas, e punha então nas palavras, nos modos uma solenidade carrancuda.
Uma amiga dela, romanesca, que via em tudo dramas, tinha-lhe dito: "É homem
para te dar uma punhalada". Ela que não conhecia ainda então o temperamento
plácido de Jorge, acreditou, e isso mesmo criou uma exaltação no seu amor por ele.
Era o seu tudo — a sua força, o seu fim, o seu destino, a sua religião, o seu homem!
Pôs-se a pensar, o que teria sucedido se tivesse casado com o primo Basílio. Que
desgraça, heim! Onde estaria? Perdia-se em suposições de outros destinos, que se
desenrolavam, como panos de teatro: via-se no Brasil, entre coqueiros, embalada
numa rede, cercada de negrinhos, vendo voar papagaios!
— Está ali a senhora D. Leopoldina — veio dizer Juliana.
Luísa ergueu-se surpreendida:
— Heim? A senhora D. Leopoldina? Para que mandou entrar?
Pôs-se a abotoar à pressa o roupão. Jesus! Olha se Jorge soubesse! Ele
que lhe tinha dito tantas vezes que a não queria em casa! Mas se já estava na sala,
agora, coitada!
— Está bom, diga-lhe que já vou.
Era a sua íntima amiga. Tinham sido vizinhas, em solteiras, na Rua da
Madalena, e estudado no mesmo colégio, à Patriarcal, na Rita Pessoa, a coxa.
Leopoldina era a filha única do Visconde de Quebrais, o devasso, o caquético, que
fora pajem de D. Miguel. Tinha feito um casamento infeliz com um João Noronha,
empregado da alfândega. Chamavam-lhe a "Quebrais"; chamavam-lhe também a
"Pão e Queijo".
Sabia-se que tinha amantes, dizia-se que tinha vícios. Jorge odiava-a. E
dissera muitas vezes a Luísa: "Tudo, menos a Leopoldina!"
Leopoldina tinha então vinte e sete anos. Não era alta, mas passava por ser
a mulher mais bem feita de Lisboa. Usava sempre os vestidos muito colados, com
uma justeza que acusava, modelava o corpo como uma pelica, sem largueza de
roda, apanhados atrás. Dizia-se dela com os olhos em alvo: "é uma estátua, é uma
Vênus!" Tinha ombros de modelo, de uma redondeza descaída e cheia; sentia-se
nos seus seios, mesmo através do corpete, o desenho rijo e harmonioso de duas
belas metades de limão; a linha dos quadris rica e firme, certos quebrados vibrantes
de cintura faziam voltar os olhares acesos dos homens. A cara era um pouco
grosseira; as asas do nariz tinham uma dilatação carnuda; na pele, muito fina, de um
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trigueiro quente e corado, havia sinaizinhos desvanecidos de antigas bexigas. A sua
beleza eram os olhos, de uma negrura intensa, afogados num fluido, muito
quebrados, com grandes pestanas.
Luísa veio para ela com os braços abertos, beijaram-se muito. E Leopoldina,
sentada no sofá, enrolando devagarinho a seda clara do guarda-sol, começou a
queixar-se: tinha estado adoentada, muito secada, com tonturas. O calor matava-a.
E que tinha ela feito? Achava-a mais gorda.
Como era um pouco curta de vista, para se afirmar piscava ligeiramente os
olhos, descerrando os beiços gordinhos, de um vermelho cálido.
— A felicidade dá tudo, até boas cores! — disse, sorrindo.
O que a trazia era perguntar-lhe a morada da francesa que lhe fazia os
chapéus. E há tanto tempo que a não via, já tinha saudades também!
— Mas não imaginas! Que calor! Venho morta.
E deixou-se cair sobre a almofada do sofá, encalmada, com um sorriso
aberto, mostrando os dentes brancos e grandes.
Luísa disse-lhe a morada da francesa, gabou-lha: era barateira e tinha bom
gosto. Como a sala estava escura foi entreabrir um pouco as portadas da janela. Os
estofos das cadeiras e as bambinelas eram de repes verde-escuro; o papel e o
tapete com desenhos de ramagens tinham o mesmo tom, e naquela decoração
sombria destacavam muito — as molduras douradas e pesadas de duas gravuras (a
Medéia de Delacroix e a Mártir de Delaroche), as encadernações escarlates de dois
vastos volumes do Dante de G. Doré e entre as janelas o oval de um espelho onde
se refletia um napolitano de biscuit que, na consola, dançava a tarantela.
Por cima do sofá pendia o retrato da mãe de Jorge, a óleo. Estava sentada,
vestida ricamente de preto, direita no seu corpete espartilhado e seco: uma das
mãos, de um lívido morto, pousava nos joelhos sobrecarregada de anéis; a outra
perdia-se entre as rendas muito trabalhadas de um mantelete de cetim; e aquela
figura longa, macilenta, com grandes olhos carregados de negro, destacava sobre
uma cortina escarlate, corrida em pregas copiosamente quebradas, deixando ver
para além céus azulados e redondezas de arvoredos.
— E teu marido? — perguntou Luísa, vindo sentar-se muito junto de
Leopoldina.
— Como sempre. Pouco divertido — respondeu, rindo. E, com um ar sério, a
testa um pouco franzida: — Sabes que acabei com o Mendonça?
Luísa fez-se ligeiramente vermelha.
— Sim?
Leopoldina deu logo detalhes.
Era muito indiscreta, falava muito de si, das suas sensações, da sua alcova,
das suas contas. Nunca tivera segredos para Luísa; e na sua necessidade de fazer
confidências, de gozar a admiração dela, descrevia-lhe os seus amantes, as
opiniões deles, as maneiras de amar, os tiques, a roupa, com grandes exagerações!
Aquilo era sempre muito picante, cochichado ao canto de um sofá, entre risinhos;
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Luísa costumava escutar, toda interessada, as maçãs do rosto um pouco
envergonhadas, pasmada, saboreando, com um arzinho beato. Achava tão curioso!
— Desta vez é que bem posso dizer que me enganei, minha rica filha! —
exclamou Leopoldina erguendo os olhos desoladamente.
Luísa riu.
— Tu enganas-te quase sempre!
Era verdade! Era infeliz!
— Que queres tu? De cada vez imagino que é uma paixão, e de cada vez
me sai uma maçada!
E picando o tapete com a ponta da sombrinha:
— Mas se um dia acerto!
— Vê se acertas — disse Luísa. — Já é tempo!
Às vezes na sua consciência achava Leopoldina "indecente"; mas tinha um
fraco por ela: sempre admirara muito a beleza do seu corpo, que quase lhe inspirava
uma atração física. Depois desculpava-a: era tão infeliz com o marido! Ia atrás da
paixão, coitada! E aquela grande palavra, faiscante e misteriosa, de onde a
felicidade escorre como a água de uma taça muito cheia, satisfazia Luísa como uma
justificação suficiente: quase lhe parecia uma heroína; e olhava-a com espanto como
se consideram os que chegam de alguma viagem maravilhosa e difícil, de episódios
excitantes. Só não gostava de certo cheiro de tabaco misturado de feno, que trazia
sempre nos vestidos. Leopoldina fumava.
— E que fez ele, o Mendonça?
Leopoldina encolheu os ombros, com um grande tédio:
— Escreveu-me uma carta muito tola, que afinal bem considerado era
melhor que acabasse tudo, porque não estava para se meter em camisa de onze
varas! Que imbecil! Até devo ter aqui a carta.
Procurou na algibeira do vestido: tirou o lenço, uma carteirinha, chaves, uma
caixinha de pó-de-arroz; mas encontrou apenas um programa do Price.
Falou então do circo. — Uma sensaboria. O melhor era um rapaz que
trabalhava no trapézio. Lindo rapaz, bem feito, uma perfeição!
E de repente:
— Então teu primo Basílio chega?
— Assim li hoje no Diário de Noticias. Fiquei pasmada!
— Ah! Outra coisa que te queria perguntar antes que me esqueça. Com que
guarneceste tu aquele teu vestido de xadrezinho azul? Vou mandar fazer um assim.
Tinha-o guarnecido de azul também, um azul mais escuro.
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12
— Vem ver. Vem cá dentro.
Entraram no quarto. Luísa foi descerrar a janela, abrir o guarda-vestidos. Era
um quarto pequeno, muito fresco, com cretones de um azul pálido. Tinha um tapete
barato, de fundo branco, com desenhos azulados. O toucador, alto, estava entre as
duas janelas, sob um dossel de renda grossa, muito ornado de frascos facetados.
Entre as bambinelas, em mesas redondas de pé de galo, plantas espessas,
begônias, macomas, dobravam decorativamente a sua folhagem rica e forte, em
vasos de barro vermelho vidrado.
Aqueles arranjos confortáveis lembraram decerto a Leopoldina felicidades
tranqüilas. Pôs-se a dizer devagar, olhando em roda:
— E tu, sempre muito apaixonada por teu marido, heim? Fazes bem, filha, tu
é que fazes bem!
Foi defronte do toucador aplicar pó-de-arroz no pescoço, nas faces:
— Tu é que fazes bem! — repetia. — Mas vá lá uma mulher prender-se a
um homem como o meu!
Sentou-se na causeuse com um ar muito abandonado; vieram as queixas
habituais sobre seu marido: era tão grosseiro! Era tão egoísta!
— Acreditarás que há tempos para cá, se não estou em casa ás quatro
horas, não espera, põe-se à mesa, janta, deixa-me os restos! E depois desleixado,
enxovalhado, sempre a cuspir nas esteiras... O quarto dele — nós temos dois
quartos, como tu sabes — é um chiqueiro!
Luísa disse com severidade:
— Que horror! A culpa também é tua.
— Minha! — e endireitou-se, luziam-lhe os olhos, mais largos, mais negros.
— Não me faltava mais nada senão ocupar-me do quarto do homem!
Ah! Era muito desgraçada, era a mulher mais desgraçada que havia no
mundo!
— Nem ciúmes tem, o bruto!
Mas Juliana entrou, tossiu, e arranjando ainda o colar e o broche:
— A senhora sempre quer que engome os coletes todos?
— Todos, já lhe disse. Hão de ficar à noite na mala antes de se ir deitar.
— Que mala? Quem parte? — perguntou Leopoldina.
— O Jorge. Vai às minas, ao Alentejo.
— Então estás só, posso vir ver-te! Ainda bem!
E sentou-se logo ao pé dela, com um olhar que se fizera doce.
— É que tenho tanto que contar! Se tu soubesses, filha!
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13
— O quê? Outra paixão? — fez Luísa rindo.
A face de Leopoldina tornou-se grave.
Não era para rir. Estava de todo! Era por isso até que tinha vindo. Sentira-se
tão só em casa, tão nervosa! — Vou até Luísa, vou palrar um bocado!
E com a Voz mais baixa, quase solene:
— Desta vez é sério, Luísa! — Deu os detalhes. Era um rapaz alto, louro,
lindo! E que talento! E poeta! — Dizia a palavra com devoção, prolongando o som
das sílabas. — E poeta!
Desapertou devagar dois botões do corpete, tirou do seio um papel dobrado.
Eram versos.
E muito chegada para Luísa, com as narinas dilatadas pela delícia da
sensação, leu baixo, com orgulho, com pompa:
— "A ti Farol da Guia, 5 de junho Quando cismo à hora do poente. Sobre os
rochedos onde brame o mar..."
Era uma elegia. O rapaz contava, em quadras, as longas contemplações em
que a via a ela, Leopoldina, "visão radiosa que deslizas leve", nas águas dormentes,
nas vermelhidões do ocaso, na brancura das espumas. Era uma composição
delambida, de um sentimentalismo reles, com um ar tísico, muito lisboeta, cheia de
versos errados. E, terminando, dizia-lhe que não era "nos esplendores das salas" ou
nos "bailes febricitantes" que gostava de a ver; era ali, naqueles rochedos,
Onde todos os dias ao sol posto
Eu vejo adormecer o mar gigante.
— Que bonito, heim!
Ficaram caladas, com uma comoçãozinha.
Leopoldina, com os olhos perturbados, repetia a data, amorosamente:
— Farol da Guia, 5 de junho!

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